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— Eu só posso ir até aqui — diz a motorista. — É o ponto final.
Ela olha pelo retrovisor enquanto levanto do banco e caminho até a porta traseira do ônibus. Sinto sua curiosidade — assim como sua pena — pairar no ar em volta de mim, provavelmente se perguntando o que de tão trágico está acontecendo na minha vida que a única solução seria vir até a Floresta dos Sonhos.
Assim que desço, meu rosto é açoitado pelo vento gelado que vem da direção da floresta a quinhentos metros de distância. Assisto ao ônibus dar a marcha à ré e voltar pelo caminho que me trouxe, me deixando sozinha apenas com um rastro de poeira como companhia. Cruzo os braços na frente do corpo e sigo a direção contrária, até meu destino.
A Floresta dos Sonhos é o lugar onde você vai quando está desesperado. Esse não é o seu nome oficial, mas todos nesta cidadezinha a chamam assim desde sempre. Muitos não acreditam nas lendas que a envolvem, outros começam a acreditar apenas quando precisam da ajuda dela. Quando piso no primeiro centímetro de vegetação rasteira e passo pela primeira árvore, sei que não tenho como voltar atrás. Adentro a floresta.
Ainda falta pelo menos uma hora para o sol se pôr, mas as copas altas e cheias não deixam espaço para muita luz entrar. Me lembro das histórias que a minha avó me contava sobre este lugar quando eu era mais nova. “Ela precisa sentir sua desesperança”, dizia. Sempre que presenciava a narrativa, minha mãe a interrompia. Ela é professora de física do ensino médio, uma mulher da ciência, não da magia.
“Magia e ciência são a mesma coisa, minha filha”, dizia minha avó, “A diferença é que a ciência precisa da comprovação de pessoas que estudaram, enquanto a magia só precisa de fé. No fim, magia é só ciência que ainda não foi descoberta”.
E minha mãe refutava: “Nenhuma equipe de cientistas que já veio estudar a floresta descobriu nada de especial nesse lugar, isso é tudo imaginação desse povo”.
“Ela só aparece para quem acredita, seus cientistas não acreditam o suficiente”, contra-atacava minha avó.
Nessas situações, minha mãe não discutia, sabia que minha vó não fazia por mal, e que eram apenas crendices de gente mais velha. Mesmo minha mãe não acreditando em magia, eu estou aqui por ela. Ela precisa de ajuda e eu estou desesperada.
Finalmente chego na clareira, o local onde, segundo as lendas, ela se mostra. Minhas mãos estão geladas e minha respiração curta. Espero. Sinto no meu coração que ela vai aparecer para mim. Ela precisa aparecer para mim.
A atmosfera é envolvida por uma névoa azulada, embaçando temporariamente minha visão. A fumaça rodopia até surgir dela uma mulher de cabelos azuis.
Ela realmente apareceu para mim.
A mulher tem a pele mais pálida que já vi, quase translúcida, e os olhos são azuis como lápis-lazúli, combinando com o cabelo comprido e liso. O vestido é de um azul-claro longo e esvoaçante, sem mangas.
A Bruxa da Floresta abre um sorriso encantador, até mesmo doce. Tudo o que consigo pensar é que as lendas não a fazem jus, ela não se parece em nada com a criatura horrenda das histórias.
— Cada um tem de mim a aparência do que traz no coração — ela fala como se tivesse lido meu pensamento, a voz macia e elegante como a seda. — O que você deseja, minha criança?
— Não sou criança, tenho 16 anos — faço o possível para firmar a minha voz antes de continuar. — Vim para vender meu sonho.
— Ah, você é uma vendedora — ela diz como se fosse óbvio, enquanto me olha de cima a baixo. — E qual o seu sonho? — ela abre os dois braços, o vestido esvoaçando, como uma atriz numa peça de teatro.
— Eu quero ser cantora.
— Mas você realmente tem talento ou é apenas uma sonhadora esforçada? — pergunta a bruxa com um tom de escárnio na voz.
Em vez de responder, entoo, numa mistura de técnica e emoção, uma canção de ninar que minha avó cantava para mim quando eu era criança. Quando termino, ela se mantém calada por alguns segundos.
— Você é boa, mas não me impressionou.
Sinto um peso no peito igual quando fiz uma audição para ganhar uma bolsa no conservatório da capital e uma das professoras fez um comentário parecido. Viro as costas e começo a caminhar em direção à saída da floresta. Não há mais nada a fazer aqui. Vou precisar arrumar outra maneira de pagar pela cirurgia da minha mãe.
— Eu não disse que você pode ir.
Meu corpo paralisa sem meu consentimento e me assusto. Uma força enterra meus pés no chão e não consigo me mover por alguns segundos. A bruxa me solta e vou até ela.
— Não entendi. Você disse que não está impressionada.
— Sim, mas também disse que você é boa. Com certeza alguma menina tem o mesmo sonho que você, e mais dinheiro do que você, mas não o mesmo talento. Esse é um sonho que vou conseguir vender. É bastante popular.
— Isso quer dizer que minha mãe vai ficar curada? — pergunto, aliviada.
— Isso quer dizer que eu vou te dar o dinheiro para a cirurgia dela. Se ela vai se curar eu não tenho como garantir. Meus poderes são limitados, apesar do que dizem. Eu não tenho o poder de deter a morte se ela não quiser ser detida. — Ela me entrega uma bolsa azul de couro, elegante e impositiva como ela. Abro e conto. Cinquenta mil reais.
— Esse é o preço do meu sonho? — pergunto mais para mim do que para a mulher.
— Esse é o preço da cirurgia, menina.
— Como você sabe da cirurgia e que esse é o valor exato?
— Você me contou.
— Não contei, não me lembro...
— Mais cedo, criança, quando esteve aqui.
— Essa é a primeira vez que estou aqui.
Em seu lábio está pendurado um sorriso terno, como se eu fosse uma criança que ainda não entende a vida. Parece prestes a fazer um afago na minha cabeça, quase sinto emanar dela uma faísca de afeição maternal. Quase. Sinto uma raiva estrangeira se apossar de mim. Isso não é justo. A névoa azul começa a envolvê-la novamente e antes que ela me deixe sozinha eu grito para ela.
— Cinquenta mil é muito pouco para um sonho.
— Mas é o que você precisa. É a troca que você quis fazer.
— Você não se sente mal por vender os sonhos dos mais desafortunados para os ricos?
— Minha querida, todos os pobres vendem seus sonhos para os mais ricos, só que alguns chamam isso de salário. Assim como vocês, eu preciso sobreviver neste mundo. Sou apenas uma comerciante, com fornecedores e compradores. Estamos todos na roda dos ratos.
Penso no quanto eu amo cantar. No quanto quero envolver uma multidão com minha voz, minha interpretação, minha verdade. O arrependimento me dilacera.
— Eu mudei de ideia. Eu não quero mais vender meu sonho. — Sinto as lágrimas caírem.
— Querida, você já vendeu. Você não percebe? Isso é um sonho. Seu cérebro apenas está reproduzindo o que você viveu durante o dia.
Abro os olhos e levo um tempo para entender onde estou. A luz do sol entra sorrateira pela fresta da cortina. Vejo a estante cheia de discos de vinis e o guarda-roupa de madeira marrom na outra parede. A familiaridade quase alivia o peso em meu peito. Estou no meu quarto. Ao lado da cama, uma bolsa de couro azul com o zíper entreaberto descansa sobre o tapete. Os cinquenta mil reais repousam lá dentro como um jacaré no pântano. É menos do que meu sonho vale, mas pelo menos vai pagar a cirurgia e nos dar a chance de curar minha mãe. Faço um esforço para deixar a esperança confortar meu coração.
Abro a porta do quarto; minha mãe está cantarolando uma velha canção na cozinha e sua voz está firme o bastante para chegar até o corredor. Hoje é um dos dias bons, graças a Deus.
O cheiro de café envolve a cozinha e aquece meu coração. Meus lábios se abrem para desejar bom-dia para minha mãe, mas tudo o que sai deles é silêncio. Tento novamente e apenas um som fraco, mas gutural, sai do fundo da garganta, que arde pela força de tentar emitir algum som. Caio no chão de joelhos e a verdade me atinge como uma faca. Estou muda.
Triste e lindo... Amei! ❤️
Lindíssimo, Larissa!!!